domingo, 1 de novembro de 2009

Luísa bafo de cebola

Felipe tinha quinze anos e era viciado em pornografia. O menino tinha uma grave tendência aos vícios. Com dez anos era viciado em video games, com vinte teria começado a fumar, aos trinta tornar-se-ia um alcoólatra e aos quarenta precisaria de remédios tarja preta para dormir. Mas foi salvo destes, e hoje, com quarenta anos, o seu único vício é a cebola.

Luísa tinha a mesma idade, morava no mesmo bairro, a duas quadras da casa de Felipe, estudava no mesmo colégio, na mesma turma. Os dois sentavam sempre nos mesmos lugares, no fundo da sala, porém em extremos opostos. Luísa no canto esquerdo, perto da porta, pois de lá era mais fácil correr para o banheiro quando sentia vontade de vomitar. Felipe no canto direito, na cadeira mais afastada do professor, ao lado de seu único amigo: Bruno, que era repetente, tinha dezoito anos e podia comprar as revistas pornográficas que revendia pelo triplo do preço a Felipe. Se Felipe tinha Bruno, Luísa não tinha ninguém, era completamente rejeitada. Ela pediu ao pai para sair do colégio onde estudara até a oitava série porque todos os dias eram humilhantes. Naquele colégio Luísa estudava no turno da tarde, saía de casa logo depois de almoçar e não tinha o costume de escovar os dentes regularmente. Num dia chuvoso o pai a obrigou a comer uma salada que tinha mais pedaços de cebola do que de todos os outros legumes juntos. Isso foi na sétima série, começo do ano. Até aquele dia Luísa tinha uma vida normal. E continuaria tendo se Maria Eduarda não tivesse resolvido sentar do seu lado, logo naquele dia.

Maria Eduarda era uma menina rica, de olhos verdes, cabelos pintados de vermelho e peitos maiores que os das outras de sua idade. Era a mais popular da sétima série ‘B’ do Colégio Dourado. Qualquer coisa que ela dissesse jamais seria esquecida nem questionada por ninguém daquela turma. E o que ela disse naquele dia foi:

– Eca! Que bafo de cebola, Lúcia!
Maria Eduarda tinha o costume de errar os nomes de propósito para fazer os outros se sentirem ainda mais insignificantes diante dela.

A partir daquele dia, em todo o colégio, só os professores ainda se referiam a Luísa apenas por seu nome. Até as cantineiras a chamavam ou falavam dela como “Luísa bafo de cebola”. E ninguém chegava perto o bastante dela para poder sentir seu forte hálito de eucalipto. Pois Luísa bafo de cebola tornara-se uma viciada em escovar os dentes desde o dia em que Maria Eduarda resolvera sentar do seu lado. Após mais de um ano e meio de humilhações diárias, Luísa finalmente conseguiu convencer seu pai a mudá-la de colégio para o segundo grau.

Foi para um colégio onde ninguém a conhecia, mas de alguma forma inexplicável a sua fama a perseguiu e lá ela continuava sendo chamada de Luísa bafo de cebola.

Felipe também era novato, mas já conhecia Bruno há muito tempo, os dois tinham apenas um ao outro como amigo. Moravam em casas vizinhas desde sempre. Felipe era o único naquele colégio que não zombava de Luísa e ficava com raiva de Bruno quando ele zombava, mas não podia fazer nada para impedir, Bruno era do tipo que resolve qualquer contrariedade com violência, e Felipe tinha amor à própria vida. Se alguém perguntasse a Felipe por que ele não zombava de Luísa, como todos os outros, ele não saberia responder, e talvez pensasse que pudesse ser algum tipo de gratidão, porque desde que Luísa entrou no colégio ele havia deixado de ser o alvo dos showzinhos diários de humilhações promovidos por Daniel e Guilherme, os bullies da turma. Debochar das espinhas de Felipe era como usar uma roupa fora de moda em plena era do bafo da Luísa. Mas não era este o motivo. Felipe estava apaixonado e não queria admitir nem para si mesmo.

Luísa era magra, absurdamente magra, seu corpo poderia ser desenhado com apenas meia dúzia de linhas retas. Tinha lábios finos e sobrancelhas grossas. Um estranho tipo de beleza que para Felipe era muito maior que o das mulheres das revistas e dos filmes pornôs. Para ele, não importava que ela tivesse bafo de cebola. Aqueles lábios finos tinham gosto de caramelo nos seus sonhos.

Felipe também era magro, mas isto não chegava a ser um absurdo. Era magro como um menino normal de quinze anos que tinha o metabolismo eficaz e cuja única atividade física praticada regularmente era a masturbação. Suas espinhas eram enormes e vermelhas, às vezes começavam a sangrar de repente e esses eram os momentos mais constrangedores, quando Guilherme costumava dizer algo como: “Felipe tá menstruando pela testa!” Luísa não via espinhas quando olhava para ele, gostava dele só porque ele era diferente. Ele tinha um caráter próprio e não fazia nada que todos os outros também fizessem, queria afirmar sua individualidade sem futilidades, tinha algo de único. Ela não teria nenhum problema em admitir, mas não tinha nenhuma amiga para confessar que estava apaixonada.

Ninguém sabe explicar como aquela cebola pintada de verde foi parar em cima da cama de Felipe em uma tarde de outubro. Mas o que realmente importa era o fato de que era uma cebola pintada verde. Também não importa como Luísa descobriu que verde era a cor preferida de Felipe, importa que colado na cebola havia um bilhete com um número de telefone.

Felipe estava saindo do banheiro e ia esconder uma revista debaixo da cama quando deu de cara com a cebola pintada de verde. Não entendeu, nem fez questão de entender nada, apenas torceu para que aquele número fosse o de Luísa bafo de cebola. E era. Quando ela disse “Alô” foi a primeira vez que Felipe ouviu sua voz, mas parecia estar reconhecendo uma voz com a qual já estava acostumado, pois era a mesma voz que ouvia em seus sonhos. Gaguejou para responder o “Alô” e Luísa, nervosa, o saudou: “Oi Felipe!”

O telefonema durou mais de uma hora, mas depois, nem Felipe nem Luísa conseguiam lembrar o que tinham falado. Os dois sentiam o mesmo nervosismo desesperador. Foi a primeira vez que Felipe usou o telefone. Luísa costumava usar muito o telefone para falar com suas amigas, quando tinha amigas. Foi a primeira vez que falou ao telefone com um menino. Ambos passaram a noite tentando lembrar trechos da conversa e se perguntando se haviam declarado seus sentimentos ou falado algo sobre uma cebola pintada de verde com um bilhete colado. Nenhum dos dois tinha se declarado, mas não precisavam mais.

Na manhã seguinte, os dois chegaram muito adiantados ao colégio, faltava quase uma hora para começar a aula. Felipe tinha olheiras enormes, não dormira naquela noite. Luísa também não, mas usava maquiagem para disfarçar. Assim que o viu, ela correu em sua direção, mas antes que pudesse dizer o tão ensaiado “bom dia, Felipe!” Ele disse: “Oi, Luísa” e sorriu. Até a aula começar eles conversaram novamente, tiveram, pessoalmente, a mesma conversa do telefone. Mas era tudo novo, afinal, não conseguiam lembrar de nada do que tinham conversado no dia anterior. Durante a aula sentaram em seus lugares de costume, mas não paravam de se olhar e sorrir um para o outro.

Foi no recreio que algo mágico aconteceu. Felipe, ao invés de ficar sentado nos degraus da escada, com Bruno, como sempre fazia, resolveu procurar por Luísa. Ela não estava na quadra, também não estava na pracinha, nem no corredor. Ela estava no lugar onde ficavam somente as pessoas que realmente não tivessem nada melhor para fazer no recreio do que esperar pela sua vez numa fila enorme, na cantina. Naquele dia Felipe fez o melhor investimento da sua vida. Decidiu entrar na fila e comprar um lanche, com o dinheiro que estava juntando para mais uma revista pornô. Comprou um cachorro-quente e uma Coca-Cola. Foi para a área das mesas e perguntou se podia sentar com Luísa, que comia uma fatia de bolo de chocolate e também tomava Coca-Cola, ela sorriu e disse: “Claro!”

Sentado perto dela, Felipe começou a pensar que ela não tinha bafo de cebola coisa nenhuma, o único cheiro que ele sentia era o do bolo de chocolate, que parecia delicioso, muito melhor que o seu cachorro quente. Eles não falavam nada, apenas comiam seus lanches.

Luísa o pegou de surpresa com o beijo. Foi logo depois que Felipe tomou o último gole do seu refrigerante. As pernas dele tremiam debaixo da mesa. Luísa não saberia explicar de onde tirou coragem para beijá-lo, mas o que importa é que beijou. Foi o primeiro beijo de ambos, eles não sabiam o quanto deviam abrir a boca, os dentes se batiam e muita saliva escorria. Mas aprenderam rápido e o segundo beijo já foi muito melhor, uma pena ter sido interrompido pela campainha indicando que o recreio tinha terminado. Voltaram para a sala de mãos dadas, sem dizer uma palavra.

Um desespero tomou conta de Felipe quando passou pela sua cabeça que quem estava com bafo de cebola era ele, pois havia muita cebola no seu cachorro-quente. O hálito de Luísa era maravilhoso. Enquanto a beijava, Felipe sentiu nos seus lábios finos o gosto de caramelo com o qual sonhava. Também sentiu o gosto da cobertura do bolo de chocolate e de tudo o que era gostoso. Mas Luísa não tinha percebido que ele estava com bafo de cebola, pois ela também só sentiu gostos bons enquanto o beijava, gosto de bacon e de mostarda, apesar de que não havia bacon nem mostarda no cachorro-quente, mas eram os gostos que ela queria.

À tarde conversaram de novo pelo telefone e Felipe fez uma pergunta só por curiosidade:

– Ei, por que você jogou logo uma cebola pela minha janela?
Luísa lábios de caramelo deu uma gargalhada e respondeu:

– Ah, eu precisava me livrar daquela cebola antes que o meu pai fizesse uma salada.

21 comentários:

Camila da Mata disse...

O desfecho é muito bom, mas não tenho muita certeza quanto ao meio.

Clara disse...

eu gostei.
muito.
é engraçado ver a expressão facial de quem está lendo, vai de caras contorcidas, a sorrisos, expressões penosas... enfim, você consegue provocar sensações no leitor, como se a história estivesse sendo contada por um dos personagens, bem ao lado...
por isso que não é uma simples história adolescente, é uma história de sensações.

Natália Corrêa disse...

Eu também gostei. Muito.
"apesar de que não havia bacon nem mostarda no cachorro-quente, mas eram os gostos que ela queria" - achei isso inspirador (mas não por causa do bacon e da mostarda. ECA!). E o desfecho foi ideal. Personagens carismáticos, com manias e pensamentos comuns a idade deles, mas explorados beeeem a sua maneira *-* aliás, fiquei ouvindo sua voz contando essa história enquanto lia, isso me fez achar ainda mais graça... :P
Ah, a cebola foi meio coadjuvante na história haha, mas tudo bem!
Adorei amor, de verdade!

Thay disse...

Muito bom!! Adoro contos! Hum... Cebolas? Nem tanto! Parabééns, seu "devaneio poético" é ótimo!

Unknown disse...

Não vale! A cebola tem que ser o centro do texto! ¬¬
hsaiuashiuashasiuhasiuas
mto bom césar!

Lucas disse...

"Ninguém sabe explicar como aquela cebola pintada de verde foi parar em cima da cama de Felipe em uma tarde de outubro."

Foi só eu que imaginou uma virada erótica repentina no conto??? XD

A forma com a qual tu tem lidado com a linguagem tá legal... e o desfecho ficou realmente bom, como o pessoal tem dito.

poli disse...
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poli disse...

comentários literários à parte, eu tenho mania de escovar os dentes, como a sua personagem, por conta de uma cebola e por conta de um episódio ainda mais tenso... e eu odeio cebola, mas de vez em quando, lucas - que ama cebola - me beija depois de ter comido e antes de ter escovado os dentes, e eu adoro uhauahuah
ops, esse é o seu blog "não-pessoal" e eu tou fazendo coments pessoais aqui... hehehe ^^"

Natália Corrêa disse...

Porque você apagou aquele comentário? Era uma amante, né? HAOSJHAOSHAOSHAOSHAO

=P

César Schuler disse...

Era sim, mas já a apaguei da minha vida.

Lys Almeida disse...

Muito legal Cesar...vc sabe envolver o leitor com a historia... consegui imaginar todos os personagens...principalmente os meninos do bullying, kkk me parece bem familiares xD
Abraçossss...

Jacque. disse...

Gostei da trama, o tempo todo senti aquele desejo de saber logo o desfecho, muito bom!

Anônimo disse...

Esse blog poderia ser selecionado como "histórias fora do comum". hahahe Adorei.
;P

beijo, mas sem bafo de cebola uhaeuahe
;D

Clara disse...

posta mais, own D:

renato sereno disse...

"principalmente os meninos do bullying, kkk me parece bem familiares xD"

Eu compreendo bem, Allys! Aliás, sou eu, Renan! \o
E... isso vale pra vc também, César.

Acredita que senti saudades dos bullies? E rancor também.
Nem vou falar do desfecho, né...
Esse ônibus vai decolar...
Suas histórias são muito dóceis, arrebatam facilmente... é bom pra quem está tenso.

kinha disse...

HauHuahUahUa!
Gostei muito! Leve e fofa sua história!
xD

Lua Durand disse...

caramba, você tem futuro escrevendo cronicas.

me encantei, sorri, e vivi as emoções com luiza e felipe!

=)

parabéns

Fernando Serra disse...

Nossa rapaz!
Gostei do teu conto...
Senti pena da garota, humilhada por uma alminha medíocre...
Odeio patricinhas, lol.

Cebolas são gostosas, rs.

Parabéns!

Lívis disse...

vc tem o DOM , da escrita, escreve bem,
Beijos Lívia

lula eurico disse...

Muuito bom.

Anônimo disse...

Lindo, César. Parabéns!